domingo, 20 de setembro de 2009

Os Lips – um coletivo capitalista?

"O socialismo consiste inteiramente na negação revolucionária da EMPRESA capitalista, e não em garantir a empresa para os trabalhadores da fábrica".
Amadeo Bordiga, Propriété et Capital


Em 1973 eclode um conflito entre os trabalhadores e patrão na empresa Lip Watch Co. O que motivou o conflito foi a proposta de re-estruturação na empresa que incluía diminuir algumas seções de trabalho e demitir parte dos trabalhadores.

O jornal francês Négation procurou fazer uma ligação entre os acontecimentos ocorrido na Lip com as que ocorreram logo após a II guerra – as comunidades de trabalho. Considera que como no passado a destruição das forças produtivas (a transferência da fábrica para outra empresa, neste caso) e o pouco capital constante foram pontos importantes para a greve e a formação do coletivo.

Além do mais, o modo arcaico do sistema produtivo francês, em pleno século XX , foi ponto importante para configuração do conflito. Os trabalhadores da Lip estavam inserido num capitalismo arcaico, no qual o trabalhador ainda se identificava com seus meios de trabalho, ou seja, os processos de produção ainda pertenciam aos trabalhadores, mesmo que estes não fossem os proprietários dos meios de produção (fábrica).

Para frear os planos de re-estruturação da empresa os trabalhadores iniciaram uma mobilização e aos poucos foram paralisando a produção. No extremo do conflito ocuparam a fábrica e fizeram dois administradores reféns.

Os Lips assumem a produção da fábrica, essa escolha não era uma crítica ao modelo de produção, os trabalhadores revindicavam formas para a garantia dos salários. Se organizam para produzir e vender para que fosse possível o pagamento dos salários. Os trabalhadores passaram a propagar o slogan: É possível: nós produzimos, nós vendemos e nos pagamos. De fato este é um lema autogestionário, entretanto esta ação não foi capaz de romper com a forma de produção capitalista (Jornal Négation).

O jornal Négation apontou que os Lips tinham “calor humano, a redescoberta da alegria de viver”. Esta energia envolvia as atividades da empresa e da vida social. No texto os “Lips” são apontados como possuidores de uma dinâmica própria, mesmo tendo um conteúdo limitado. Pois pretendiam apenas re-estabelecer os postos de trabalho e garantia de salários.

Ainda, no mesmo texto, busca-se mostrar que os trabalhadores da Lip procuraram criar uma vida comunal entorno da empresa. Aponta para um 'um novo sentido de comunidade',

... na nova LIP havia uma tendência a criar uma vida comunal organizada em torno da empresa: encontros, piqueniques e festivais foram organizados, ao que parece , quase diariamente” (Jornal Négation)

Porém ao assistir o documentário, vi depoimentos de esposas de trabalhadores (lideranças) que revelam o contrário – a entrega e exaustão dos maridos, em relação a luta para manter a empresa funcionando. Um total abandono da família. Acredito que o que buscavam não era fundar uma nova ordem social mas sim, manter a existente.

A ideia de que a vida pode ocorrer entorno da fábrica revela a centralidade do trabalho / instituição-emprego. Nesta lógica a Empresa concentra todas as necessidades para produção e reprodução humana e dá sentido a vida. Isso foi uma realidade social e uma prática para algumas empresas capitalistas, que criaram associações / grêmios recreativos para seus funcionários, para que estes pudessem usufruir de lazer em suas horas vagas (talvez assim mitigavam a possibilidade de insatisfação e revolta dos trabalhadores).

Além disso o movimento estava calcado na liderança de algumas pessoas, como a figura emblemática de Charles Piaget, sindicalista da CFDT (Confédération Française Démocratique du união Travail).

Segundo o jornal francês o que se formou foi um coletivo capitalista, pois a ruptura foi devido o 'abandono' do patrão. A organização foi necessária para possibilitar a gestão da empresa e essa foi feita por assembleia geral. Ainda baseado no texto “na Lip não surgiu uma nova empresa”, os trabalhadores estavam mobilizados para manter os postos e modos de trabalho e para isso criaram uma forma de manter os funcionamento da fábrica e conseguir um novo patrão, que restaurasse as antigas condições de trabalho.

O Jornal Négation ressalta que na LIP houve a manutenção das hierarquia e salários, sendo a manutenção “uma necessidade imperativa para a criação do coletivo capitalista”. Entretanto no documentário apenas ocorre uma discussão sobre como iam fazer a divisão dos valores obtidos com a vendas dos relógio. Surgiu questões como levar em conta as necessidades, a participação, o envolvimento e também em relação ao que é ser justo.

Outro ponto abordado no texto foi a transformação social e para que esta ocorra o movimento iniciado nos locais de trabalho precisam transpor os portões da fábrica e atingir a sociedade num todo. A força de luta dos trabalhadores só se torna potencialmente revolucionária quando abrange a totalidade da sociedade. O Jornal Négation afirma que “o proletariado pode se constituir enquanto classe somente se ultrapassa a empresa”. O sequestro do estoque de relógio e depois a produção e venda dos mesmos fez com que a sociedade tomasse consciência sobre a situação vivida por aquele grupo e assim solidarizando-se. Houve uma expansão do movimento interno (fábrica) para a região de Bensançon, pessoas passaram a visitar a empresa. Muitas pessoas queriam vivenciar aquilo - passavam alguns dias como numa vivência socialistas de produção capitalista. Entretanto na falta de uma proposta diferente da existente (sociedade capitalista) o movimento não se estendeu além da região de Besançon. Esta se envolve pois dependia da fábrica de relógios, estava organizada a partir da empresa capitalista. A Lip era importante para o desenvolvimento do (arcaico) capitalismo francês e para a esta região.

Charles Piaget revela em seu depoimento que foram várias as tentativas de movimentos sindicalista, esquerdas e pesquisadores querem fazer da Lip um laboratório de experiências, mas em nenhum momento se envolveram e sempre se mantiveram autônomos. Entretanto o que buscavam era o apoio dos sindicatos para a negociação da empresa para algum 'capitalista' – patrão.

A luta pela Lip demostra que os trabalhadores, mesmo vivendo em uma sociedade capitalista, resistiam as formas mais intensivas do capitalismo. Na França a cultura do trabalho de pequenos produtores é muito forte e a identidade de ofício também. Arroyo e Schuch apontam que na “França, não é permitido que grandes redes de supermercado se instalem no grandes centros urbanos, para que mercearias, padarias, quitandas e feiras possam cumprir seu papel.” ( Arroyo J. C. T. e Schuch F. C. Economia popular e solidária, a alavanca para um desenvolvimento sustentável. Coleção Brasil Urgente. Perseu Abramo. 2006.).

Acredito que a Lip represente o movimento de resistência de uma classe trabalhadora que se vê sendo expropriada dos processos de trabalho e de sua identidade com o trabalho e com a própria empresa. Charles Piaget era filho de um artesão relojoeiro, o que demostra a antiga ligação deste homem com o labor – fazer relógios. E quando surge a possibilidade de parte deste fazer não existir mais lidera uma resistência. Também significou a possibilidade de expressão feminina no movimento em defesa do trabalho.

Por fim, parece existir uma desconexão entre o texto e o filme. Mas devemos considerar que existe uma diferença no tempo histórico. O texto do Jornal é um artigo publicado logo em seguida do fato ocorrido, a reflexão quei estava sendo feita era no furor dos sentimentos. O filme feito anos depois, com alguns participantes que procuram fazer uma reconstituição histórica do movimento dos trabalhadores. Os depoimentos revelam como foi o desenvolvimento do conflito e também o sentimento deixado nos participantes. Não deixando de observar que este é o pensamento re-elaborado (memória), após anos e muitas outras coisas vividas .

Assistir o documentário e efetuar a leitura do texto fez-me pensar em muito no desenvolvimento do Coletivo com o qual trabalho.... o que será que fazemos -lá... será que de alguma forma o grupo consegue romper com a lógica predominante, avassaladora do capitalismo ou apenas mitigamos essa forma? Distribuímos responsabilidades para facilitar os mecanismos de reprodução do sistema? Ou estamos construindo uma nova forma de relação de trabalho?


Os LIP, a imaginação ao poder (Les LIP, L'imagination au Pouvoir).Diretor: Christian Rouad. França, 2006, 118 minutos.(Filme).

Crise e Autogestão - Jornal Négation #3, 1973, traduzido pelo grupo autonomia.

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